E outra vez, ela está lá

Fragmento da Imagem de jan mesaros por Pixabay

O que vou transcrever a seguir é um poema batido à máquina no original. É singelo, até um tanto piegas, se preferir. Mas o que me atrai nele é o simples fato de eu não conseguir me lembrar de tê-lo escrito. Eu simplesmente não me lembro. E nem faz tanto tempo assim. Foi escrito em 2019, mais precisamente no dia 25 de junho. A folha datilografada está na pasta azul de couro falso.

E outra vez, ela está lá

E outra vez me deparo com a dificuldade com o branco
Desta vez é a tela branca
Não a tela digital
Um tecido branco estirado sobre uma moldura de madeira barata
Algo tão simples de se fabricar
De se conceber

Um tecido branco
Torna-se um novo Vazio
Um berço para uma nova gênesis
Outra Gênesis Alva

Alguém já disse que
No início eram trevas
Tudo era escuro
Não acredito nisso

Experimente ficar diante de uma tela em branco
De uma folha em branco
E verá que no início tudo é claro
Um infinito de possíveis
Tão abundante, tão repleto em si
Capaz de sufocar
Imagine ter o Todo à sua frente
O Absoluto
Se isso não o intimida
Talvez seja porque não sentes o Cosmo
A brincar com teus medos
A deleitar-se com sua paralisia
Esperando
Silencioso
Astuto
Sempre zombeteiro

Uma outra vez ela está lá
A Gênesis Branca
Aguardando a tua criação
O teu momento de criança
A manifestar a tua crença
De que és teu próprio Deus
Esperando
Assumir-te o teu papel de supremo criador
Outra vez, ela está lá.

A Arte de Escrever – Arthur Schopenhauer

Arthur Schopenhauer (1788-1860) é um dos mais importantes filósofos alemães. Ele achava que o mundo nada mais era do que uma representação formada pelo indivíduo. Influenciou Freud, Nietzsche e Bergson com seu pessimismo e foi o responsável por introduzir o budismo à metafísica alemã. Foi além do idealismo kantiano e tinha em Hegel seu principal opositor. Suas obras mais importantes são O mundo como vontade e representação (1819) e Parerga e Paralipomena (1851).

Nesta antologia de ensaios recolhidos de Parerga e Paralipomena, o leitor vai encontrar textos que trazem as mais ferinas, entusiasmadas e cômicas reflexões acerca do ofício do próprio Schopenhauer, isto é, o ato de pensar, a escrita, a leitura, a avaliação de obras de outras pessoas, o mundo erudito como um todo. (L&PM)

Quando nos propomos a ler um clássico, sempre se faz necessário levar em consideração o período em que ele foi escrito. Muitas críticas encontradas neste livro em particular ainda são muito atuais e é isso que uma grande obra clássica carrega por décadas e gerações. Contudo o leitor vai perceber que algumas dessas críticas podem não ser tão pertinentes à realidade brasileira, dada grande diferença nos índices de leitura entre as culturas brasileira e alemã.

Esta obra, de um dos filósofos mais importantes da humanidade, é dividida em 5 partes: “Sobre a erudição e os eruditos”, “Pensar por si mesmo”, “Sobre a escrita e o estilo”, “Sobre a leitura e os livros” e “Sobre a linguagem e as palavras”, todos escritos na primeira metade do século XIX. O livro traz nestas partes, algumas críticas reflexões sobre cada um dos assuntos. Os textos abordam o mundo da literatura, enaltecendo alguns aspectos e destruindo cruelmente, outros. Schopenhauer persegue principalmente a postura de autores da época que escreviam para lucrar com suas obras – assunto que continua polêmico até os dias atuais.

Ficha técnica:
TÍTULOA ARTE DE ESCREVER
AUTORARTHUR SCHOPENHAUER
TRADUÇÃOPEDRO SUSSEKIND
EDITORAL&PM EDITORES
EDIÇÃO
ANO2013
PÁGINAS152
ACABAMENTOBROCHURA
ISBN9788525429995
…………………….Arthur Schopenhauer (Danzig, 22 de fevereiro de 1788 — Frankfurt, 21 de setembro de 1860) foi um filósofo alemão do século XIX. Ele é mais conhecido pela sua obra principal “O mundo como vontade e representação” (1818), em que ele caracteriza o mundo fenomenal como o produto de uma cega, insaciável e maligna vontade metafísica. A partir do idealismo transcendental de Imannuel Kant, Schopenhauer desenvolveu um sistema metafísico ateu e ético que tem sido descrito como uma manifestação exemplar de pessimismo filosófico. Schopenhauer foi o filósofo que introduziu o pensamento indiano e alguns dos conceitos budistas na metafísica alemã. Foi a filosofia de Schopenhauer que motivou Friedrich Nietzsche a ingressar no mundo da filosofia e que mais tarde serviu de base para toda a obra psicanalítica de Sigmund Freud, tendo também fortemente influenciado o pensamento e teorias de Carl Gustav Jung.

Memento Mori

Em 2018, quando ainda possuía conta ativa no Facebook, postei essa imagem. Trata-se de uma das muitas ilustrações do famoso livro medieval “Emblemata Sacra” de Daniel Cramer, edição de 1624.  Essa imagem, em específico, carrega o alerta: “Memento Mori”, cujo significado é: “lembre-se de que vais morrer”. Na virada do réveillon daquele ano, recordo de ter me divertido com a ideia de fazer uma lista de desejos e metas para o ano seguinte, tendo em mente o sombrio aviso que carregava a ilustração. E realmente escrevi a lista. E a batizei de Lista Memento Mori. Eu a escrevi no momento que os fogos subiam aos céus e marcavam a passagem, à zero hora local daquele ano. (No ano seguinte falhei de forma espetacular ao tentar cumprir a lista). Eu ainda a possuo guardada entre meus inúmeros escritos inúteis.

Naquele ano eu encarava a ilustração, a mensagem que ela carrega e o nome da minha lista como algo divertido, quase em tom jocoso. Eu não me recordo de ter realmente parado para refletir seriamente sobre aquilo.

O que eu não sabia na época era que, quase quatro anos depois, eu passaria por um grande desafio (no momento que escrevo essas linhas ainda o enfrento). Desafio esse que posso classificar como o mais difícil que já atravessei até hoje. E ao pensar na proximidade do final do ano mais uma vez, lembrei-me dessa ilustração e passei a pensar, agora profundamente, sobre essa mensagem medieval. Meu desafio ainda não terminou. Luto com todas as minhas energias para me manter firme e focado em vencer.

Neste fim de ano penso em fazer uma nova lista. Fazer uma nova lista para me divertir mais uma vez. Penso em nomeá-la de Memento Mori, mais uma vez. Só que dessa vez, penso que posso alertar-vos com relativa segurança: “Lembre-se de que vais morrer”.

para Móríí

Minha querida Olívia

Essa é minha pequena e preciosa máquina de escrever. Seu nome é Olívia. Uma Olivetti modelo Tropical portátil, sucesso de vendas nos anos 80. Confesso, com um certo pesar, que não me lembro com certeza em que ano a ganhei dos meus pais, mas acredito que eu tinha 13 anos. Foi presente de aniversário, disso sim tenho certeza. Já se vão mais de duas décadas que saí da casa de meus pais e Olívia ainda está comigo, e funcionando. Fazia muito tempo que esta pequena relíquia estava calada, esquecida no alto de um guarda roupas.

Talvez as gerações mais novas não entendam o real significado dessas preciosidades, já que não vemos mais essas incansáveis e ruidosas engrenagens enchendo os ambientes com seu inconfundível e frenético ruído, quando operada por mãos ágeis e habilidosas. Todos os escritórios, consultórios, repartições, bibliotecas, escolas e departamentos eram infestados dessas pesadas coisas usadas para escrever. Por décadas serviram a todo tipo de propósito, até serem sumariamente aposentadas pelos dispositivos eletroeletrônicos.

Lembro-me, uma certa vez, de pegar uma pequena mesa dobrável de madeira para escrever na calçada de casa, em frente ao jardim. Eu queria escrever ao ar livre. Não me lembro exatamente da história que escrevia, mas meu objetivo era começar a escrever um livro.

Minha memória guardou apenas que se tratava de uma aventura que se passava no Egito. Naquela época eu era aficionado por todos os mistérios esotéricos que envolvessem pirâmides. Lembro-me vagamente que o protagonista tinha que viajar para a enigmática cidade do Cairo, para enfrentar muitos perigos e mistérios sobrenaturais nas sinistras galerias subterrâneas das famosas Grandes Pirâmides. Qualquer semelhança com o personagem Indiana Jones não é mera coincidência, afinal estes eram os filmes mais badalados da época e influenciavam a imaginação de toda aquela geração de aspirantes a escritores.

Tomado de saudosismo, resolvi procurar uma fita nova para trazer Olívia de volta à vida. Não sabia se o mercado ainda produzia e comercializava essas fitas e para minha surpresa encontrei com uma certa facilidade e com num preço bastante acessível. Não pensei duas vezes: comprei e fui correndo para casa. Enquanto removia décadas de poeira de suas engrenagens, crescia uma certa aflição por não ter certeza se seria capaz de fazê-la funcionar outra vez. Depois de limpa e com a nova fita devidamente colocada – sim, eu ainda me lembro exatamente como se faz isso – finalmente comecei a teclar. Aquele cheiro inconfundível e difícil de descrever inundou meus sentidos e encheu minha mente com o frescor daquelas memórias de infância. Você está lendo esse pequeno relato num blog, mas pode ter certeza que essas palavras foram escritas pela Olívia.

A Arte do Romance – Milan Kundera

Primeiro livro de não ficção do autor de A insustentável leveza do ser, A Arte do Romance é a confissão nascida da experiência prática do romancista. Nele são discutidas em profundidade a evolução do romance e seus aspectos centrais (de Cervantes a Proust, passando por Hermann Broch e Kafka), pelo olhar subjetivo de um artífice que vê ameaçada a continuidade de
seu trabalho.

Escritos ainda sob o forte impacto da crítica francesa da época do Nouveau Roman e dos ataques pós-modernos, os ensaios procuram restaurar o sentido do romance como gênero autônomo, após o esgotamento da experimentação modernista, sem ceder às tentações que desejavam a recuperação da narrativa romanesca do século XIX. (Cia das Letras).

O livro de ensaios de Kundera está dividido em sete partes: “A herança depreciada de Cervantes”, “Diálogo sobre a arte do romance”, “Anotações inspiradas por Os Sonâmbulos”, “Diálogo sobre a arte da composição”, “Em algum lugar do passado”, “Sessenta e três palavras” e “Discurso de Jerusalém: o romance e a Europa” e todas essas partes acabam convergindo para os romances do autor. No entanto o leitor não fica sem as fortes referências que o influenciaram e marcaram presença na narrativa de grandes romancistas europeus como Cervantes, Proust, Hermann Broch e Franz Kafka.

“A obra de cada romancista traz uma visão implícita da história do romance, uma ideia do que é o romance: é essa ideia de romance, inerente a meus romances, que tentei expor”.

O autor aborda o desenvolvimento histórico do romance, apontando como o gênero literário tem acompanhado os homens desde o início dos tempos modernos. Assinala, por exemplo, a importância que Hermann Broch dava à descoberta do conhecimento por intermédio dos romances.

Milan Kundera descreve como os romances eram costumavam ser mais longos, devido às viagens dos personagens pelo mundo, fazendo crítica aos romances modernos, curtos e muitas vezes rasos. Para Kundera, o leitor precisa ser capaz de se lembrar do início, por isto a característica da condensação dos textos modernos e de ir direto ao âmago das coisas. O romance, na visão do autor, tem um espírito de complexidade e de continuidade, devendo fazer diálogo com as obras anteriores e suas influências.

O romancista não é nem historiador nem profeta: ele é explorador da existência”

Para os admiradores de entrevistas transcritas com escritores, o livro carrega um diálogo entre Christian Salmon e Kundera. Este bate papo foi publicado pela revista nova-iorquina Paris Review, e está dividido em duas partes: sobre a arte do romance e sobre a arte da composição. Mesmo que o leitor não tenha lido as obras do autor é possível acompanhar a linha de raciocínio das respostas dada à naturalidade da conversa e o aprofundamento das respostas.

Um dos pontos fortes do livro, contida na quinta parte, é um belo ensaio sobre a produção literária de Kafka e como ela influenciou outros escritores, através de sua própria lógica interna. Na sexta parte, Kundera compartilha conosco seu dicionário pessoal, pedido por um amigo diretor de uma revista, onde ele procura mostrar a dificuldade que estava enfrentando com as traduções dos seus livros para outros idiomas, fazendo com que ele mesmo tivesse que revisar as obras. Essa parte curiosa contém 63 palavras-chave de suas narrativas.

“Sejamos mais precisos: todos os romances de todos os tempos se voltam para o enigma do eu. Desde que você cria um ser imaginário, um personagem, fica automaticamente confrontado com a questão: o que é o eu? Como o Eu pode ser apreendido? É uma dessas questões fundamentais sobre as quais o romance como tal se baseia. Pelas diferentes respostas a esta questão, se você quiser, pode distinguir diferentes tendências e, talvez, diferentes períodos na história do romance. A abordagem psicológica, os primeiros narradores europeus nem conhecem.”

Por fim, o último capítulo nos apresenta um discurso de um prêmio que o autor recebeu em Jerusalém. Kundera discursa separando o conceito de autor e romancista e cita Flaubert mais uma vez, onde diz que o romancista precisa desaparecer por trás de sua obra e renunciar ao papel de homem público.

Recomendado não só para quem quer aprender sobre o gênero literário do romance, mas também para quem é curioso pelo processo criativo desse ofício. O livro de Kundera é de fácil compreensão pois o texto não é engessado pelo excesso de teorias nem por infindáveis técnicas sobre escrita de ficção. A edição resenhada é da Companhia das Letras numa nova leva de reimpressões de luxo em capa dura desse autor renomado e obrigatório.

Milan Kundera nasceu em Brno, na República Tcheca, em 1929, e emigrou para a França em 1975, onde hoje vive como cidadão francês. A maioria dos seus livros foi escrita em tcheco, mas o autor retrabalhou-os inteiramente na tradução francesa. Por sua recomendação, a tradução para o português toma como base os originais franceses. Seu livro A Insustentável Leveza do Ser recebeu o Prêmio Los Angeles Times Book Prize 1984, na categoria Ficção.

Um Sopro de Vida – Clarice Lispector

Trecho do livro “Um Sopro de Vida”, de Clarice Lispector.

“Isto não é um lamento, é um grito de ave de rapina. Irisada e intranquila. O beijo no rosto morto.

Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.

De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é.

Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Este livro é a sombra de mim. Peço vênia para passar. Eu me sinto culpado quando não vos obedeço. Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam. Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam.

Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então – para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa – eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a ideia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abelha do dia florescente de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia.

Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser discursivo. Assim: poluição.

Escrevo ou não escrevo?

Saber desistir. Abandonar ou não abandonar – esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? ou sou daqueles que prosseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? como, digamos, o próprio fim do mundo? ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência?

Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é que se torna fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os “fatos”? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela? Será horrível demais querer se aproximar dentro de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o eu passa a não existir mais, a não reivindicar nada, passa a fazer parte da árvore da vida – é por isso que luto por alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.

Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras – quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.”

Créditos: Todas as imagens, vídeos e trilhas são de livre utilização, sem necessidade de copyright, conforme orientação dos produtores. Dedico a eles todos os créditos.

Sobre a Escrita de Stephen King – Resenha

Eleito pela Time Magazine um dos 100 melhores livros de não ficção de todos os tempos e vencedor dos prêmios Bram Stoker e Locus na categoria Melhor Não Ficção, “Sobre a escrita – A arte em memórias” é uma obra extraordinária de um dos autores mais bem-sucedidos de todos os tempos, uma verdadeira aula sobre a arte das letras. O livro também não deixa de lado as memórias e experiências do mestre do terror: desde a infância até o batalhado início da carreira literária, o alcoolismo, o acidente quase fatal em 1999 e como a vontade de escrever e de viver ajudou em sua recuperação. Com uma visão prática e interessante da profissão de escritor, incluindo as ferramentas básicas que todo aspirante a autor deve possuir, Stephen King baseia seus conselhos em memórias vívidas da infância e nas experiências do início da carreira: os livros e filmes que o influenciaram na juventude; seu processo criativo de transformar uma nova ideia em um novo livro; os acontecimentos que inspiraram seu primeiro sucesso: Carrie, a estranha. Pela primeira vez, eis uma autobiografia íntima, um retrato da vida familiar de King.

Somente um mestre na narrativa ficcional poderia iniciar seu livro dizendo que “este é um livro curto porque a maioria das obras sobre a escrita está cheia de baboseiras”. Com o tom de uma boa conversa entre amigos é que Stephen King nos guia por um livro sobre sua vida, seu processo criativo e quais as ferramentas que escritores iniciantes e experientes deve usar (e quais evitar) para exercer o ofício de contar histórias.

“Escrever é um trabalho solitário. Ter alguém que acredita em você faz muita diferença. ”

Após três breves prefácios, S. King começa a narrar várias memórias de sua vida no curioso capítulo inicial que decidiu chamar Currículo. Num primeiro momento o leitor poderá achar que se trata de uma autobiografia e que se enganou ao comprar o livro pensando em ler técnicas de escrita de um grande mestre do terror e suspense, mas logo é seduzido pelo bom humor e a informalidade da narrativa.

Depois de saborear bons “causos” (alguns tristes e dramáticos) da vida de Stephen King, ele passa a discorrer sobre diferentes assuntos relacionados como a publicação de histórias, como por exemplo: como encontrar bons agentes literários, como usar o que ele chama de caixa de ferramentas de escrita, como a linguagem pode influenciar na originalidade, a atenção à verossimilhança em uma trama bem feita, a como ouvir a voz dos personagens – muitos desses tópicos foram surgidos expectadores em várias de suas palestras.

King deixa claro no texto que não tem a pretensão de transformar ninguém em um bom escritor mas procura dar dicas sobre a importância das duas fases na produção literária: a primeira, de portas fechadas, onde a criatividade passa a fluir e as palavras são colocadas no papel; e uma segunda, na qual o escritor pode pedir opinião de outras pessoas sobre o seu texto para ajudar a perceber problemas e corrigir possíveis falhas de enredo, lacunas e a cortar excessos que possam atrapalham o ritmo da história.

“Não existe um Depósito de Ideias, uma Central de Histórias nem uma Ilha de Best-Sellers Enterrados; as ideias para boas histórias parecem vir, quase literalmente, de lugar nenhum, navegando até você direto do vazio do céu: duas ideias que, até então, não tinham qualquer relação, se juntam e viram algo novo sob o sol. Seu trabalho não é encontrar essas ideias, mas reconhecê-las quando aparecem.”

Na parte final do livro, Stephen King mostra um exemplo de uma narrativa própria, antes de editar e após a edição, e aqui vai um mérito à editora Companhia das letras, no seu selo “Suma de Letras”, que reproduziu bem os trechos dos textos rasurados de Stephen King em reproduções fac-símile, tanto em inglês, como em português. E para concluir, o autor apresenta uma enorme lista de recomendações de leituras para quem sempre o perguntava em suas palestras o que ele costumava ler, visto que uma das principais práticas para quem deseja melhorar a escrita é ler muito.

A persistência e a disciplina são as mensagens de Stephen King para quem duvida de que é possível ir longe ao se dedicar ao ofício da escrita. Embora ele alerte que nenhuma oficina de escrita possa fazer milagres por si só, King afirma que é possível sempre melhorar com esforço e dedicação. Sobre a Escrita é um divertido empurrão de ânimo para quem precisa continuar girando a roda da arte de escrever.

É autor de mais de cinquenta livros best-sellers no mundo inteiro. Os mais recentes incluem Revival, Mr. Mercedes, Escuridão total sem estrelas (vencedor dos prêmios Bram Stoker e British Fantasy), Doutor Sono, Joyland, Sob a redoma (que virou uma série de sucesso na TV ) e Novembro de 63 (que entrou no TOP 10 dos melhores livros de 2011 na lista do New York Times Book Review e ganhou o Los Angeles Times Book Prize na categoria Terror/Thriller e o Best Hardcover Novel Award da Organização International Thriller Writers). Em 2003, King recebeu a medalha de Eminente Contribuição às Letras Americanas da National Book Foundation e, em 2007, foi nomeado Grão-Mestre dos Escritores de Mistério dos Estados Unidos. Ele mora em Bangor, no Maine, com a esposa, a escritora Tabitha King.

entreVISTA do Artista – Luciano Salles

Luciano VISTO por Luciano

Luciano Salles é quadrinista e ilustrador da Folha de São Paulo. Autor da história em quadrinhos Grand Prix Metanoia (2019, publicação independente/Catarse) EUDAIMONIA (2017, publicação independente/Catarse), Limiar: Dark Matter (2015, publicação independente), L’Amour: 12 oz (2014, Editora MINO), O Quarto Vivente (2013, publicação independente) e da HQzine Luzcia, a Dona do Boteco (2012, publicação independente).

Crédito da foto: Leila Penteado

*** Entrevista realizada via WhatsApp.

Para começar nosso bate papo, conte-nos um pouco do seu processo de criação. De onde vêm suas ideias e inspirações? Você cultiva hábitos para se manter criativo?

Bom Carlos, sempre que me fazem essa pergunta eu digo que as minhas ideias e inspirações resultam do fato de eu ser uma pessoa observadora. Eu observo muito as situações, as falas, detalhes que estão acontecendo, alguma coisa que estou vivendo. Observo e questiono os motivos de algumas coisas e isso é algo natural que eu sempre cultivei. Se seu cultivo alguma coisa, é esse observar. Eu costumo aproveitar as ideias desse processo de observação. Eu penso que para quem é desenhista, ilustrador, essa é uma boa técnica, se é que posso chamar assim, para perceber ideias.

Muitos são os mestres que nos inspiram durante nossa trajetória em diversas fases da vida. Quem são seus mestres ou artistas preferidos atualmente? Além dos atuais, quais artistas e/ou escritores estão sempre presentes quando você se coloca a pensar sobre um novo projeto?

Quando estou em um novo projeto, é natural que as minhas influências venham sem que eu precise ficar relembrando-as. Os mestres que me influenciam no ato de desenhar, vêm dos quadrinhos. Na verdade são três “M“s. O principal é o Moebius, em relação à plasticidade do desenho, até onde é possível chegar, de uma forma totalmente livre com o desenho. Frank Miller é outro que me influenciou bastante. Acho que é bem visível a influência de Frank Miller no meu traço. Talvez ele tenha influenciado meu trabalho até mais do que o próprio Moebius. O Lourenço Mutarelli também me influenciou bastante. Falo dos quadrinhos do Mutarelli. O “Transubstanciação”, o compêndio do “Diomedes” e até mesmo sua literatura. Mas para criar minhas histórias, as referências são cinematográficas. David Lynch está em mim, no meu jeito de criar e de pensar.

“Renovar o amor que você tem por alguma coisa, principalmente em um momento como esse”

Como você tem visto esse momento de privação física e isolamento social? De que maneira você está interagindo com essa nova realidade que se apresenta sem nos pedir licença?

Esse momento de privação, algo imputado em nós, é importante para perceber nossa pequenez diante de tudo. Você vê, um vírus, de uma suposta gripe. Eu tenho visto esse momento como algo que temos que obedecer e ficar em casa, para não adoecer, fazendo com que a probabilidade de pegar o vírus seja menor, e para diminuir a probabilidade de contaminar outras pessoas, caso eu seja contaminado e for assintomático ou demorar para manifestar esses sintomas e colocar outros em risco. É ter empatia. Está difícil interagir com essa nova realidade. Eu sinto meu desenho um pouco travado. Eu percebo que meu desenho, algumas vezes, não está tão bem encaixado com os textos que ilustro para a Folha de São Paulo. Cheguei a comentar com o Contardo Calligaris (eu ilustro sua coluna na Folha), que eu havia achado que uma de minhas últimas ilustrações não tinha se encaixado muito bem, mas ele gostou bastante da ilustração e achou que havia se encaixado sim. De qualquer forma eu tenho produzido bem menos. Cheguei a parar totalmente um novo quadrinho que eu estava produzindo. Com essa redução no ritmo de produção acabei me voltando muito para a leitura. Estou lendo bastante, estudando bastante e, além das demandas, estou procurando me forçar a desenhar. Até para exercer, de certa forma, algo que eu talvez nunca tenha dito em uma entrevista, renovar meu amor pelo desenho e isso é uma coisa que temos que fazer sempre. Renovar o amor que você tem por alguma coisa, principalmente em um momento como esse.

Imagem de virin000 por Pixabay

De que formas essa nova realidade compulsória reflete-se no seu trabalho, em sua arte?

Eu sinto que alguma coisa está bem mais travada no fluir da linha do meu traço. As minhas ideias, como eu falei, no meu processo de observação – até porque estou mais tempo isolado – esse processo parece estar mais travado. O fato dessa realidade compulsoriamente trancafiar a gente, acaba por trancafiar tudo, o corpo, a alma, e a gente tem que trabalhar isso e se você tiver a oportunidade de perceber isso, deve procurar uma terapia, uma análise, talvez conversar. Não podemos sair, mas podemos fazer, de repente, um café da tarde online para conversar, dizer o que estamos sentindo. Acho que isso é válido e ajuda muito. Enfim, essa nova realidade reflete na forma de um certo travamento na minha produção, até porque parei de produzir meu quadrinho, que era uma coisa que eu estava muito louco para fazer. Mas de qualquer forma, como eu costumo também dizer, o último que eu produzi, pode ser o último quadrinho. Então, tem aí “Grand Prix METANOIA” no mercado.

“Nós usamos o termo Fake News, mas é importante dizer que é uma notícia mentirosa. É uma mentira”

Atualmente no Brasil existe um forte movimento obscurantista derivado do recente tsunami de Fake News que assolou (e ainda assola) o país desde as últimas eleições presidenciais. Em sua opinião, quais são os riscos reais que a arte e a cultura estão correndo? O que é só cortina de fumaça e com o que devemos nos preocupar?

Essa pergunta é extremamente importante e de certa forma sofisticada para uma resposta rápida. Nós usamos o termo Fake News, mas é importante dizer que é uma notícia mentirosa. É uma mentira. E como toda mentira, se você repetir muitas e muitas vezes, acaba virando uma verdade. Esse processo, não é de hoje, já estava rolando desde 2014. O pessoal começou a perceber essa possibilidade, basta ver a eleição do Trump. Os riscos que corremos que esse movimento obscurantista, terraplanista, negacionista, me assusta muito, de verdade. Esse retrocesso é realmente perigoso porque tem muita gente que se identifica, que compra essas ideias, que assiste a um vídeo no Youtube, por exemplo, falando sbre Terra Plana e acredita de fato nisso. Usando isso como exemplo, acredito que o Youtube deveria colocar um adendo de que se trata de uma informação errada, não confirmada. Isso proporciona riscos reais para a cultura. Basta ver em que pé está o Ministério da Cultura, que teve até uma insistência em referências nazistas. O episódio do “Copo de Leite”, onde eles diziam que era para comemorar o agronegócio, as grandes safras, e depois pediram desculpas, mas de qualquer forma foram vídeos feitos e veiculados. Para ilustrar o que quero dizer, vou compartilhar uma lembrança. Quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, jogávamos bola na rua ou em quadras, e fazíamos pequenos campeonatos entre bairros. Certa vez enfrentamos uma turma de outro bairro, com garotos da mesma idade, mas que eram fisicamente mais fortes. Eu marcava um rapaz mais forte do que eu, e num jogo eu fiz falta duas vezes nele e, sempre que fazia, pedia desculpas. Ele então me disse: “Quando você fizer a falta, não peça desculpas”. Isso me marcou desde aquela época. Depois de fazer uma falta, não adianta mais pedir desculpas. E isso está acontecendo nesse momento. Fazem um movimento e depois vêm com desculpa. E isso é um perigo.

“O meu desenho é uma reação a algo que foi proposto ou feito por alguém. O pensionamento político do artista sempre vai estar lá, independente dele pensar muito a respeito”

 Nosso país vive uma realidade polarizada, onde os debates não são muito claros e são carregados de passionalidade ideológica irracional e muitas vezes sem profundidade. Recentemente o filósofo brasileiro Vladimir Safatle afirmou que “na política não existe gramática comum”. O escritor Julián Fuks, vencedor de vários prêmios literários importantes, entre eles, o Jabuti, defende que a literatura contemporânea deve ser engajada, sem ser panfletária. Partindo dessa aparente sinuca de bico, você acha que ainda existe espaço para uma arte/literatura não engajada politicamente? Qual sua opinião sobre o posicionamento político do artista em sua própria arte? E como isso é possível, visto que aparentemente ninguém escuta ninguém?

Eu preciso enfatizar que sua entrevista é uma das melhores que eu já respondi. Perguntas excelentes. Em minha opinião, acredito que não tem como um artista fazer sua obra sem ser politicamente engajada, seja lá o que quer que essa obra queira abranger. Mesmo que não seja intencional, isso acontece porque o autor carrega isso nele. Fazer uma obra intencionalmente engajada sem um prévio planejamento, vira panfletária. Sendo panfletária, fica datada. Um ótimo exemplo disso é o livro 1984, de George Orwell, publicado pela primeira vez em 1949. É uma obra extremamente atual, ainda que seja distópica. É quase o que a gente está vivendo nos dias de hoje. É extremamente inteligente o livro não citar especificamente a data onde se passam os acontecimentos. E isso é uma coisa que eu procuro fazer nos trabalhos que eu faço. O único que fiz isso foi no “O Quarto Vivente” (2013). Se passa no Brasil, no ano de 2177. Foi o único quadrinho que fiz isso, mas por uma necessidade narrativa. Em nenhum outro eu coloco data ou o lugar onde se passa. Eu acho que esse é um posicionamento político que eu exerço como artista, nas minhas próprias histórias e nas minhas ilustrações. A segunda parte da pergunta é ainda mais sofisticada, pois sugere que aparentemente ninguém escuta ninguém. Não se trata de uma aparência, realmente ninguém mais ouve ninguém. Esse também é outro problema. Numa conversa com alguém, onde você está argumentando, a outra pessoa já está pensando na resposta. Ela acaba por querer somente te replicar, mesmo antes de você terminar de falar. E às vezes, nem toda fala necessita de uma reposta. Algumas vezes, o silêncio é a melhor resposta. Então eu acho que tudo que a gente produz é de certa forma engajado. Meu trabalho eu sei que é engajado, sobretudo o que faço para o jornal. É uma reação. O meu desenho é uma reação a algo que foi proposto ou feito por alguém. O pensionamento político do artista sempre vai estar lá, independente dele pensar muito a respeito. E então você consegue identificar o que o artista quis dizer, mesmo que não seja de forma clara, panfletária. Voltando ao início de sua pergunta, essa realidade polarizada, esse pensamento binário é muito raso e que leva a extremos.

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Você acha que nós humanos estaremos melhor depois da pandemia? Seremos mais solidários? Ou continuaremos da mesma forma, fazendo o mesmo que fazíamos antes do Corona vírus? Que lições devemos tirar de tudo isso?

Eu não acho que nós melhoraremos depois da pandemia. Não seremos mais solidários. Ainda estamos no meio da pandemia e as pessoas continuam saindo, não usando máscara, não estão sendo solidárias. A pandemia não vai mudar nosso DNA, nosso genoma, nosso jeito de pensar, nosso cérebro ancestral de milhares de anos. Algumas poucas pessoas devem mudar, mas na prática, vamos voltar da mesma forma. Casa vez mais egoístas. Acho que a grande lição que podemos tirar dessa pandemia é como a desinformação prejudica os outros. Pegue como exemplo a Nova Zelândia e sua primeira ministra Jacinda Ardern. Mesmo sabendo que as realidades entre Brasil e Nova Zelândia são muito diferentes, é fato que eles praticamente controlaram a curva de contágio. E aqui, em meio a uma escalada da doença, já pensamos em abrir o comércio e atividades não essenciais. A maior lição que devemos tirar de tudo isso é que possamos aprender e exercer a empatia. A humanidade só vai melhorar, aos poucos, um de cada vez. Veja as duas Grandes Guerras. A Segunda Guerra Mundial ocorreu num prazo muito curto, logo depois da primeira. Foi pouquíssimo tempo entre uma e outra. O ser humano não costuma melhorar logo depois de tragédias. Existe aquele ditado russo que diz que “depois da tempestade vem a enchente”.

“Essa maldita mania de dizer que a economia precisa girar”

Em recente entrevista a um jornal de grande circulação no país, o professor Leandro Karnal afirmou que “classes média e alta enfrentam tédio, classes baixas enfrentam fome”. O que você pensa desse cenário de obrigação de ficar em casa?

Somos obrigados a ficar em casa. O governo deveria passar todas as instruções para serem replicadas para estados e municípios. São mais de 80.000 mil mortos. Se você decide, por exemplo, sair de casa para correr ou pedalar, tudo bem, mas faça isso sozinho, não em grupo. Coloque uma máscara. Muitas pessoas não tem a possibilidade de ficar em casa, pois necessita do trabalho. Quando eu compro algo para entregar em casa, tem sempre alguém que fará o trabalho de trazer até aqui. Se eu posso ter esse luxo de receber compras em casa, é porque tem alguém que trabalha para me entregar. O mínimo que eu devo fazer é lavar as mãos, colocar máscara, agradecer a pessoa, desejar a ela um bom trabalho, que ela se cuide, exercer a empatia. Temos que ficar em casa, senão vamos protelar tudo isso. Essa situação vai se arrastar. Essa maldita mania de dizer que a economia precisa girar. Quem precisa girar é o Estado. Podem falar o que quiserem sobre o pensamento liberal, mas no Brasil não é o pensamento liberal que funciona. É liberal na economia e conservador nos costumes.  É uma coisa louca isso.  O Estado existe para que nessas horas ele possa suprir o povo. Se você pode, fique em casa. Se você tem que trabalhar, tome todos os cuidados possíveis para não contaminar o próximo. Mas em algum momento, isso tem que passar. E com certeza os maiores prejudicados serão os que se encaixam nas minorias. São os que mais sofrerão.

“Todo artista tem que ter um plano B”

O poeta Ferreira Gullar uma vez disse que “a arte existe porque a vida não basta”. Como você avalia essa afirmação diante de nossa realidade atual, onde assistimos uma marcha que tenta sistematicamente sufocar a cultura no Brasil? Na sua opinião, quais os desafios que a arte e a cultura enfrentarão no mundo pós pandemia?

A arte sempre vai existir. É justamente nos momentos que tentam sufocá-la, que a arte vem com tudo. Podem tentar sufocar arte, sufocar os artistas, mas a arte reage de uma forma muito mais bela. A vida em si não tem um sentido. Eu é que dou sentido para a minha vida. Eu penso que seja nítida essa tentativa de sufocar a arte no Brasil. Querem que alguns ilustradores e chargistas da Folha de São Paulo se expliquem por causa de seus trabalhos. Basta ver como aquela charge do Aroeira causou incômodo. Em seguida houve uma imensa reação imediata de muitos outros artistas, opondo-se à toda aquela virulência. É como eu falei, a arte é uma reação ao movimento. É sempre assim. Eu acho que um dos maiores desafios que a arte e a cultura vão enfrentar num mundo pós pandemia, será encontrar uma maneira de se manterem financeiramente. Por exemplo, meus contratos firmados até a metade de 2020 foram todos cancelados. Neste momento eu tenho meu trabalho na Folha de São Paulo e minha esposa, que possui uma escola de Yoga, passou a dar aulas de dentro de casa, na modalidade online. O mercado de arte precisará sim voltar com as feiras, os eventos de quadrinho, com as pessoas comprando as obras nas lojas dos artistas. Acho que o maior desafio é o econômico para os artistas se manterem ativos. Eu mesmo já acionei um plano B, porque já se vão mais de seis meses e tudo foi cancelado. Eu tive que acionar meu plano B porque eu não quero ficar pagando para ver. Claro que eu não vou deixar de fazer quadrinhos, trabalhar para a Folha de São Paulo. Isso jamais. Mas confesso que acionei meu plano B. Todo artista tem que ter um plano B.

Imagem de congerdesign por Pixabay

Para terminar… Você está trabalhando em algum projeto novo? Se sim, conte-nos um pouco sobre o que podemos esperar.

Eu estava trabalhando em um projeto novo, mas a quarentena me forçou a interrompê-lo. Meu trabalho novo é o mais recente quadrinho que eu lancei, o “Grand Prix METANOIA”, que está na loja da Amazon, e como eu já comentei, o último quadrinho que eu publiquei, pode ser meu último quadrinho. A gente não sabe o que pode acontecer daqui a uma hora, não é mesmo? Mas eu estava trabalhando num quadrinho novo, estava ficando bem legal, mas infelizmente a pandemia realmente me afetou. Estou procurando me reinventar todos os dias no meu desenho. Todos os dias eu renovo meu amor pelo meu desenho, pelas artes, pelo texto, por criar novas histórias e isso é um jeito de me manter. Pretendo procurar algumas técnicas novas para inalar novos ares. Algo novo deve surgir. Mas sem pressa, no momento certo vai acontecer. Até porque é um respeito da minha parte para com o meu leitor. Se eu vou fazer alguma coisa, que seja a melhor que eu já produzi. Não vou fazer algo apenas por fazer. Farei algo que valha o empenho da pessoa em se dedicar a ler e admirar aquele trabalho, aquele desenho.

Acho que é isso. Agradeço a oportunidade, a entrevista. Fique bem. E você que está lendo, também fique bem. Se você tiver lendo durante a pandemia, fique em casa. E se a pandemia já passou e já temos uma vacina, não deixe de tomá-la. Um grande abraço!

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entreVISTA do Artista – Tarso Eric

Tarso VISTO por Tarso

Cartunista independente que publica seus trabalhos em sua página no Facebook e Instagram (@tarsoeric). Em 2016 criou a série “Vida de Livreiro” que narra algumas experiências pessoais de quando trabalhou na área, até 2020. Ainda em 2016, no mês de dezembro lançou a primeira edição do zine independente “Sim, FEDE”, com alguns de seus trabalhos. Em 2017 participou de eventos com enfoque na publicação de Histórias em Quadrinhos, como o Ugrafest em São Paulo e o Junta Geek em Ribeirão Preto, nesse último, além de expositor, participou também de um bate-papo com o cartunista Marcatti sobre “Quadrinhos Underground”. Em 2018 publicou durante todo o mês de março a série “Ação entre Amidos” no jornal A Cidade de Ribeirão Preto. Em novembro desse mesmo ano, lançou o quarto volume do zine “Sim, FEDE”

Para começar nosso bate papo, conte-nos um pouco do seu processo de criação. De onde vêm suas ideias e inspirações? Você cultiva hábitos para se manter criativo?

Acredito que o meu processo de criação vem principalmente de um desejo de subversão. De tentar tirar a ordem ou importância de alguma coisa ou apenas ressignificar essa coisa. O meu hábito para me manter criativo é, sempre que possível, consumir algum produto cultural, ler um livro, uma HQ, assistir a um filme, ouvir um disco e esperar algum fragmento me chamar a atenção.

Muitos são os mestres que nos inspiram durante nossa trajetória em diversas fases da vida. Quem são seus mestres ou artistas preferidos atualmente? Além dos atuais, quais artistas e/ou escritores estão sempre presentes quando você se coloca a pensar sobre um novo projeto?

Meus autores favoritos são Franz Kafka e Art Spiegelman. Acho que o Spiegelman é o autor que eu costumo recorrer constantemente. Além dele tem também a Marjane Satrapi, Alan Moore, André Dahmer, Allan Sieber, Angeli, Lourenço Mutarelli, Winshluss, Daniel Clowes, o casal Robert e Aline Kominsky-Crumb. Ultimamente comecei a recorrer ao Quino. Também tem o disco “Clara Crocodilo” de Arrigo Barnabé. Eu gosto muito da forma como é construída a narrativa do disco e de como essa narrativa conduz o ouvinte.

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Como você tem visto esse momento de privação física e isolamento social? De que maneira você está interagindo com essa nova realidade que se apresenta sem nos pedir licença?

Desenhar tem ajudado a não enlouquecer. E ficar desenhando é o que facilita ficar em casa. O problema é não ter essa opção de sair para tomar uma cerveja ou um café, comer um lanche, ou só dar uma volta mesmo. Essas pequenas atitudes ajudam a trazer novas perspectivas, novas ideias, novas referências. Mas também citando um trecho do livro “O Estrangeiro” de Camus: “Acabamos por nos habituar a tudo”. O personagem principal (que por algum motivo quando li na quarentena, eu imaginava sendo o ex-ministro Nelson Teich) se recorda dessa frase da mãe quando está na cadeia. Muitas pessoas têm comparado a situação atual a uma prisão, mas não acho que seja o caso. E também não tem muito o que possamos fazer agora, além de seguir as recomendações da OMS, incluindo ficar em casa, se possível.

Essa situação me remete a algo que eu vi o filosofo Slavoj Zizek dizer certa vez em uma entrevista: “Nós estamos vendo que o capitalismo não funcionou e está chegando ao fim. O que vem agora?

De que formas essa nova realidade compulsória reflete-se no seu trabalho, em sua arte?

Tenho percebido que para fazer um “desenho livre”, despretensioso, acabo tendo uma grande facilidade. Flui bem e me relaxa. Por isso até já fiz 4 rodadas da brincadeira que eu peço nas redes sociais para as pessoas me indicarem um personagem e eu tenho que desenhar esse personagem. Mas para trabalhar na HQ mais longa que me propus a fazer tem sido mais difícil. Acabo ficando ansioso ou exausto mentalmente e não consigo render muito. Inclusive nessa HQ tem uma citação a essa situação toda. Algo que até o meio de março, eu não imaginava incluir na história. Além disso, de forma mais direta, eu fiz alguns desenhos e charges retratando o período atual

Atualmente no Brasil existe um forte movimento obscurantista derivado do recente tsunami de Fake News que assolou (e ainda assola) o país desde as últimas eleições presidenciais. Em sua opinião, quais são os riscos reais que a arte e a cultura estão correndo? O que é só cortina de fumaça e com o que devemos nos preocupar?

As artes nunca foram muito valorizadas no Brasil. Alguns governos anteriores até fizeram um esforço relativo para tentar mudar isso, obtendo alguma pequena vitória. Esse governo atual já deixou claro que não gosta nem de arte e nem do que é produzido aqui de modo geral, além de ter um grande complexo de vira-lata, que sempre existiu no Brasil, mas não de maneira tão escancarada a ponto do presidente daqui bater continência pra bandeira dos EUA e falar “I love you” para presidente deles e classificar isso como uma atitude patriótica. Tenho a impressão de que existe um plano em curso para marginalizar o máximo possível as artes feitas aqui, tentando manter só aquelas que eles próprios aprovam e consideram “de bem”, “de bom gosto” e essas besteiras todas. O bom disso que essas atitudes sempre são um tiro no pé, como o caso da charge do Aroeira que eles tentaram censurar, mas acabaram divulgando e dando um maior alcance pro desenho, além de incentivar indiretamente outros artistas a criarem novos desenhos sobre o caso. Quanto mais eles pressionarem, mais fazer arte vai ser um ato de resistência, e para um governo como esse se manter, eles precisam de inimigos para fingirem combater, e as artes sempre vão se encaixar nesse perfil.

Eu não sei dizer se o governo representa um risco real a arte. Se eles cortam os programas de incentivos, os artistas arrumam outras maneiras de se bancarem, ainda mais hoje que existem esses sistemas de financiamento coletivo. Justamente pelas artes não serem valorizadas nesse país, muitos artistas procuram não depender exclusivamente dos ganhos financeiros de seus trabalhos. O governo pode até dificultar um pouco a produção, mas nunca vão conseguir impedir de uma maneira eficiente. Penso que não existe equivoco maior do que achar que, sem incentivo financeiro, os artistas vão desistir. Ainda mais no Brasil.

“Como de costume nesse país, a conta vai acabar caindo em quem tem menos dinheiro. Isso é reforçado por um governo que desde o começo se mostrou favorável a necropolítica (teorizada pelo filosofo Achille Mbembe).”

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Nosso país vive uma realidade polarizada, onde os debates não são muito claros e são carregados de passionalidade ideológica irracional e muitas vezes sem profundidade. Recentemente o filósofo brasileiro Vladimir Safatle afirmou que “na política não existe gramática comum”. O escritor Julián Fuks, vencedor de vários prêmios literários importantes, entre eles, o Jabuti, defende que a literatura contemporânea deve ser engajada, sem ser panfletária. Partindo dessa aparente sinuca de bico, você acha que ainda existe espaço para uma arte/literatura não engajada politicamente? Qual sua opinião sobre o posicionamento político do artista em sua própria arte? E como isso é possível, visto que aparentemente ninguém escuta ninguém?

Sim, acredito que existe público para tudo, ainda mais em tempos de internet. O artista pode optar por não citar política de maneira direta no trabalho por várias razões, como por não estar tão familiarizado com o tema, ou até para atingir um público maior. Não acho que isso necessariamente categorize uma obra como ruim ou inferior. Cada um faz o que bem entende com a sua arte, tendo ciência de qual é seu objetivo, seu público alvo, o fato de que ninguém é imune a críticas, que arte pode gerar as mais variadas consequências, etc. Como eu disse antes, hoje em dia tem plateia pra tudo. Sempre é possível encontrar alguém que vai se identificar com algum aspecto que seja de qualquer obra. O ato de falar de política em uma obra, no máximo pode limitar o consumo dela para um nicho especifico, ou em alguns casos, até trazer novos consumidores. Mesmo no extremismo em que vivemos hoje, não acho que isso seja um impedimento ou um tabu. Depende muito do caminho ou risco que cada um está disposto a correr.

Acho que se as pessoas tentarem mudar pra serem melhores, deve ser algo que vai durar uns 3 meses no máximo, depois elas voltam a ser as mesmas escrotas de sempre.

Você acha que nós humanos estaremos melhor depois da pandemia? Seremos mais solidários? Ou continuaremos da mesma forma, fazendo o mesmo que fazíamos antes do Corona vírus? Que lições devemos tirar de tudo isso?

Não. Acho que no máximo pode acontecer aquele efeito de “academia pós ano novo”, quando vira o ano, a pessoa se matricula na academia porque era a meta dela praquele ano, mas chega em fevereiro e pessoa já parou de frequentar. Ou vai procrastinando para começar depois do carnaval, e daí depois da páscoa, e assim por diante. Acho que se as pessoas tentarem mudar pra serem melhores, deve ser algo que vai durar uns 3 meses no máximo, depois elas voltam a ser as mesmas escrotas de sempre. E na real eu acho bem difícil a população de um modo geral pensar em mudar alguma coisa se levarmos em consideração como eles já não respeitam a quarentena e as normas da OMS por conta de caprichos egoístas.

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Em recente entrevista a um jornal de grande circulação no país, o professor Leandro Karnal afirmou que “classes média e alta enfrentam tédio, classes baixas enfrentam fome”. O que você pensa desse cenário de obrigação de ficar em casa?

Acho que não é um cenário que se limita apenas a esse momento de quarentena. Isso é uma constante do Brasil. Antes já era assim e depois que essa pandemia passar, muito provável que vá continuar assim. O problema é que nesse momento estamos vivendo uma situação atípica para todo mundo, mas com pessoas que vão ser bem mais afetadas que outras. Como de costume nesse país, a conta vai acabar caindo em quem tem menos dinheiro. Isso é reforçado por um governo que desde o começo se mostrou favorável a necropolítica (teorizada pelo filosofo Achille Mbembe), e nessa situação, tem um vírus pra cumprir essa função. As classes baixas além de enfrentarem a fome, também vão enfrentar um risco bem maior de serem contaminadas. Muitos deles, acredito que provavelmente até a maioria, não tem a opção de ficar em casa. Ironicamente, muitas pessoas da classe baixa vão trabalhar inclusive para manter a qualidade e o conforto das classes média e alta, que vai ficar em casa reclamando na internet, que ninguém pensa na economia. Essa situação me remete a algo que eu vi o filosofo Slavoj Zizek dizer certa vez em uma entrevista: “Nós estamos vendo que o capitalismo não funcionou e está chegando ao fim. O que vem agora?”. Talvez esse seja o momento de reavaliar o mundo e tentar um sistema novo e menos desigual, aproveitando que o século XXI só começa de fato depois da pandemia, segundo a historiadora e antropóloga Lilia Moritz. Mas como eu disse anteriormente, acho difícil que isso aconteça e provavelmente vamos voltar para o que já era.

O poeta Ferreira Gullar uma vez disse que “a arte existe porque a vida não basta”. Como você avalia essa afirmação diante de nossa realidade atual, onde assistimos uma marcha que tenta sistematicamente sufocar a cultura no Brasil? Na sua opinião, quais os desafios que a arte e a cultura enfrentarão no mundo pós pandemia?

Num primeiro momento, acho que teatros, galerias, livrarias, shows, etc, vão ser afetados por conta da questão da aglomeração. Passando isso, não consigo prever nada a longo prazo. Os rumos desse país são muito incertos. Tanto de uma maneira boa como de uma ruim. Mas como disse antes, as tentativas de sufocar a arte aqui são falhas e ineficazes, felizmente. O máximo que eles conseguem é atrasar ou dificultar um pouco as coisas, mas nada definitivamente.

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Para terminar… Você está trabalhando em algum projeto novo? Se sim, conte-nos um pouco sobre o que podemos esperar.

Na quarentena eu comecei uma série que se chama “Ex-tudos – Ensaios e fragmentos sobre o nada”, que estou gostando bastante e quero dar continuidade. Acho que é um trabalho que fala sobre ausência. Não tenho certeza ainda. E tem a HQ longa que estou fazendo desde o ano passado. A essa altura eu achava que já teria mais material pronto, mas pelo menos passei de 50 páginas, o que categoriza oficialmente esse trabalho como a HQ mais longa que eu já fiz até agora. Ela é parte um diário autobiográfico e parte alguma outra coisa além disso. Percebi recentemente uma ligação muito forte dessa HQ com a música, no sentido de composição, mas ainda preciso aperfeiçoar mais essa ideia. Essa história já tem nome, mas no momento eu prefiro não revelar.

Onde você encontra o Tarso:

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Instagram: https://www.instagram.com/tarsoeric/

Blog: https://oblogfede.blogspot.com/

A IIIº Lei de Newton

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Se eu tivesse nascido destro
as letras fluiriam
No singelo deslizar da pena as palavras brotariam como um regato
Que se cristaliza em rio, quando é a nascente que corre a floresta

Eu não nasci direito
Nasci esquerdino
Canho
Sinistro
Oblíquo
Canhoteiro
Torto
Desastrado
Atravessado

A IIIº Lei de Newton postula que para toda ação existe sempre uma reação de igual intensidade, mas que atua em sentido contrário

Mesma intensidade, sentidos opostos
Assim é minha escrita

Um sinistro empurra as palavras
Força-as à frente
Empurra nascente e rio
O dobro ou mais de esforço
Para cristalizar as palavras